Este texto é sobre o que deu errado; o lado da vida visto como o não ideal, o inevitável que se tenta evitar, os fatos dos quais todos queremos fugir negando sua existência. É sobre as errâncias do caminho universal do homem em suas vicissitudes fundamentais. Elas existem porque passam pelo crivo da experiência consciente e inconsciente, são produtos da percepção e da imaginação pessoal, uma questão de visão e significação das vivências. Dizemos, portanto, que são demasiadamente humanas, envolvem racionalidade e moralidade. Andam por aí, muitas se esforçam para não ser vistas, companheiras da nossa jornada, algumas as tem ao seu lado, outras lhes dão a mão e não soltam e outras ainda dizem não vê-las; as primeiras significam as vivências e aprendem, as segundas assumem seu lado sombrio mas continuam errando sem nunca aprender ou apoiando nelas para viver, as terceiras obscurecem a intencionalidade dos seus desejos, vivendo em um mundo ilusório, distante ou mesmo bizarro. Abordarei aqui alguns tipos de errâncias apontando suas possíveis causas, efeitos no psiquismo e consequências por elas desencadeadas:
1. O erro
Erro como oposto ao acerto, erro oposto ao correto. O erro apresenta um sentido mais amplo e talvez englobe todo o universo das chamadas errâncias. O erro pressupõe o acerto e por vezes o correto, não no sentido moral, mas antes referente a lógica. Nas conexões e redes processuais dos eventos, o acerto se põe como uma expectativa pronta e definida. Existe um critério fixo exterior para dizer sobre uma resposta comportamental, não necessariamente corresponde a uma verdade de fato, podendo ser apenas um construto dado socialmente movidos por crenças no interior da cultura. Na solução de uma equação matemática, a resposta que torna os seus termos verdadeiros é dita correta. Em um programa onde se estabelece um padrão de resposta, regras e metas; o comportamento foi correto se se elas foram atingidas e respeitadas.
Errar é humano porque as inadequações só podem ser produzidas por ele. Há uma dependência da racionalidade, consciência e intuição. Se o funcionamento cognitivo é limitado e os demais processos psicológicos também, haveremos de concordar que a suscetibilidade do erro é mais do que frequente: o erro é o acerto da vida. Assumirá um caráter moral no envolvimento de emoções e sentimentos, quando afeta alguém, deixando-o triste, culpado ou frustrado. Há aqueles que diante do erro se alegram indiscriminadamente, outros aprendem, outros evitam ao máximo a ponto de eliciá-los em outras instâncias da existência. Acertar é humano também. Essencial para as escolhas, para as relações e até para a continuidade da própria história integrada em uma identidade cultural. Os erros vão acontecendo até se tornarem acertos e vice-versa, assim ocorre a nossa evolução e sobrevivência.
2. A falha
Falha como oposto da completude e falha como oposto a eficiência.Falha-se quando não se cumpre um objetivo ao qual foi designado. Uma pessoa falha quando não consegue realizar determinada tarefa. Uma tecnologia falha quando não desempenha determinada função. Diante da falha vem a culpa e a vergonha; pode acontecer de vir o sentimento de reparação, uma vontade de consertar esse tipo de erro considerado defeituoso. As falhas ocorrem quando não se planeja bem algo ou mesmo quando a qualidade não é estabelecida. Para se dizer sobre falhas consideramos parâmetros, existem comparações inevitáveis ao esperado. A falha também é um “quase lá”. Quando vemos um fato ou evento em sua totalidade, percebemos uma parte não preenchida ou distinta (que não deveria estar ali naquela composição). As falhas ocorrem por desvio de percepção, tamponamento da consciência ou mesmo quebras de padrão promovidas por fenômenos naturais, sendo o tempo e o espaço, os mais frequentes e indutores de erro. Por isso mesmo ainda dizemos que há uma força igual ao contrário que busca o acerto, o preenchimento, a restauração para falhas subsequentes. Tendemos à perfeição e ao ideal, por nunca alcançarmos, vamos falhando e acertando infinitamente. Lembramos também as falhas comprometedoras como aquelas que prejudicam o funcionamento de um sistema. O coração que para de bater comprometendo a circulação de oxigênio e provocando a morte das células gradativamente.
3. A falta
A falta é uma lacuna, o erro não do comportamento em si,mas da não execução de um anterior, aquilo que deixou de ser feito para um determinado resultado. Pode ser também a sensação intermitente de uma incompletude como a falha, sentir a ausência de um objeto ou pessoa que se tenha vínculos fortes ou tenha se prendido energicamente. A falta é a noção de que ainda se precisa de ferramentas, processos, habilidades, atitudes para resolver um problema, alcançar um resultado, reparar um dano. A falta é a errância benevolente pra nos alertar sobre as necessidades gerais e específicas da nossa existência.
4. O fracasso e a derrota
O fracasso como oposto ao sucesso, o fracasso como sinônimo de derrota. Fracassar é ressentir-se diante de um projeto que falhou. É sentido como erro pesaroso e comprometedor. Muitas vezes não são catastróficos, mas errâncias amplificadas afetando o psiquismo negativamente. O sucesso, por sua vez, é o ideal alcançado, um ganho, a otimização de um processo. Para o sucesso e para o fracasso também existem parâmetros culturais. Vivemos em sociedade e construímos modelos, imagens do esperado. Temos o modelo de pessoa feliz, modelo de força, modelo de beleza, etc. O fracasso sentido como derrota, pressupõe a não conquista, uma batalha perdida, um esforço inútil sem resultado. O sentimento de fracasso é perigoso e pode culminar em condições depressivas/melancólicas. Pode jogar o sujeito em uma dinâmica conflituosa consigo mesmo e as consequências mais evidentes são a perda de energia, a raiva, o ódio do mundo, o desinteresse e enfim a desesperança e desespero.
Se o fracasso for visto apenas como uma etapa, sua negatividade diluirá, permanecerá o desassossego passageiro, no entanto, se aceitará com mais segurança as próprias limitações da existência, a impossibilidade do sucesso imediato ou mesmo recorrente e a continuidade da vida que não cansa, o tempo que passa e se abre em diferentes possibilidades de realização.
5. A frustração e a decepção
Essa errância tem uma afetação mais pessoal, pois se relaciona a valores princípios expectativas e estima. Não conseguir fazer oque se quer e da forma que se convencionou fazer gera a frustração. É imediatamente colateral ao sentido do fracasso e também pode desembocar na derrota. A frustração evidencia a falta, a falta permite perceber as falhas e signifique os erros. A frustração é perigosa quando atinge o nível do insuportável, enredando o sujeito em uma cadeia de empobrecimento da experiência, autodepreciação, esquecimento do passado/perda da memória em detrimento de eventos presentes. Podem surgir daí vícios como o alcoolismo, as manias e obsessões e tentativas desesperadas de preencher a ausência espiritual, uma perdição, o absurdo. A decepção, por seu turno, é sinônima da frustração, mas pode ser aplicada também no nível coletivo, enquanto a primeira é mais uma repercussão ou ressonância dos eventos no âmbito individual. A decepção geralmente está no outro: ele/ela não fez o que queria, devia ter feito isso naquela hora; a decepção é como se fosse uma mágoa, um ressentimento que dificilmente se resolve.
6. A perda e o prejuízo
Perder é deixar de ganhar, ou deixar de ver, perceber, sentir algo ou alguém. As perdas, em sua maioria, independem da nossa vontade, simplesmente acontecem no mundo onde a verdade é a da transformação e transitoriedade. A perda traz luto, leva o indivíduo a seu interior, aprisionando-o geralmente. É difícil lidar com o conforto de uma regularidade que foi quebrada, uma história que foi corrompida, um momento que foi deletado sem saber. A perda angustia, dói. A perda traz insegurança, desconforto, paralisação. O prejuízo é o tipo de perda que pode ser evitada a partir do cuidado e do pensamento estratégico. O prejuízo é comprometimento do funcionamento de um que também compromete o outro. É o contrario de lucro, um ganho acima do esperado(mas pode ser imaginado).Quem se sente prejudicado, sente injustiçado, desprestigiado e angustiado. Tanto a perda como o prejuízo podem levar a morte lenta da pessoa se não forem constantemente revisados. A agressividade, a violência, o desejo de destruição e a intolerância cultural/sentimental/pessoal são frutos podres dessa árvore que cresceu regada pela desesperança e absurdo.
7. A deficiência e a carência
Essas duas são faltas e falhas que fazem diferença, necessidades reais ou aspirações ideais a serem supridas. Um erro da natureza através do nosso olhar humano. A deficiência pressupõe o nível ideal de uma substância, uma quantidade certa de membros, um funcionamento normal dos mecanismos de uma máquina. A carência é uma urgência de reposição, é mais sentimental que a deficiência, pois manifesta o grito daquele que sofre pela ausência do outro, se sente sozinho/solitário, desacompanhado na experiência, sem algo a se prestar, uma sensação de inutilidade e desamor. A carência deve ser suprida para o funcionamento normal, para a correção dos erros comprometedores de um organismo, por exemplo. A carência é doentia quando se torna obsessividade, um tentativa de preencher uma lacuna imaginada, a mania sexual por exemplo, a necessidade de sempre ter diferentes parceiros sexuais. Deficiências e carências podem ser apenas materiais, mas frequentemente trazem afetações e dificuldades reais.
Para resumir, as errâncias são muito conhecidas de todos nós. Geram culpa, desespero, impaciência e intolerância, mas também são possibilidades do nosso lado sombrio; as errâncias apontam caminhos através do sofrimento e do imprevisível .A aleatoriedade é recorrente, mas muitas delas podem ser planejadas, ocorrer de propósito ou serem mal intencionadas. As errâncias usam disfarces não por elas mesmas, mas fantasias projetadas sobre aquilo que não queremos ver. Haveremos de espantar que no baile das mascaras, se o desconhecido causa medo, ainda mais desperta a curiosidade, ansiamos pelo domínio da natureza, somos aficionados pelos segredos e mistérios.
Guilherme Bernardes
CRP 04/52299
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